terça-feira, 16 de julho de 2013

Por que os militantes se voltaram contra os manifestantes


Por Diogo Costa para Ordem Livre

Independência partidária é analfabetismo político! Vandalismo é coisa de classe média conservadora! Se pintar de verde e amarelo é se decorar com as cores do fascismo!
Essas foram algumas das conclusões que os militantes mais engajados tiraram das manifestações brasileiras. Se estivessem certas, o Movimento Occupy seria um projeto analfabetização mundial, Oakeshott seria assinatura de pichador e o topete do Itamar deveria inspirar tanto pavor quanto a calvície do Mussolini.
A militância que ontem deflagrou a onda de protestos brasileiros hoje passou para a concorrência. Ela agora toma as ruas num esforço para substituir a espontaneidade massiva das manifestações pela organização tradicional de movimentos retrasados. Para evitar um progresso do debate público para temas e valores do século XXI, ela tenta manobrar a agenda política de volta para o século XX. Como se deu essa mudança? Essa pergunta se responde colocando o dedo no ponto onde psicologia, ideologia, retórica e estratégia se cruzam dentro da cabeça do perfeito militante latino-americano.
No The New York Times de 29 de abril, o colunista David Brooks traçou uma distinção entre escritores engajados e escritores desapegados.
O escritor engajado é aquele que “se alinha intimamente com um time”. Seu trabalho é “fornecer argumentos” a favor de seu partido, e apontar “os erros e transgressões” cometidos pelo outro lado. O engajado “está disposto a ser repetitivo” porque sua tarefa não é tanto persuadir o outro lado quanto mobilizar e “energizar as pessoas que já concordam” com ele.
Já o escritor desapegado “teme que a mentalidade de time ofusque sua visão.” Ele vê a política partidária “como uma competição entre verdades parciais”. Apesar de não ignorar a política, o escritor desapegado “prefere ter um impacto gradual” moldando as “percepções da realidade subjacente na esperança de proporcionar um contexto sobre o qual outras pessoas possam pensar”.
Brooks defende o desapego por “uma questão de higiene mental”. Se um escritor desapegado corre o risco de se tornar “irrelevante” dentro do seu próprio “senso de superioridade”, o escritor engajado corre riscos maiores. O engajamento nos afasta da ciência, da busca desinteressada pela verdade.
Goethe dizia que “a consciência é a virtude dos observadores e não dos agentes de ação”. Brooks concordaria com Goethe, e por isso nos convida a permanecer observadores. Mas ele se esquece de que a preocupação com “consciência” e “higiene mental” já pressupõe um compromisso com primeiros princípios que falta ao protótipo do engajamento, isto é, a militância.
Só adianta usar a saúde no argumento a favor da penicilina quando o outro lado faz alguma distinção categórica entre a vida humana e a vida bacterial. O militante não renuncia sua campanha ao apelo de Goethe porque, na verdade, o militante já concorda com Goethe. Ele está disposto a sacrificar sua consciência porque entende que “a ação é para a salvação em massa e não para a salvação pessoal do indivíduo.”
Saul Alinsky escreveu essa última frase em seu livro Rules for Radicals, de 1971 (versão PDF). Para a militância revolucionária, Rules for Radicals tem o papel que O Príncipe tinha para as autocracias renascentistas.
O que faz de Alinsky o Maquiavel da militância contemporânea. Com a diferença de que Maquiavel bajulava uma elite que o ignorava enquanto Alinsky, trabalhando como organizador comunitário de base, desprezava a elite de seu país até que ela passasse a reconhecê-lo. Barack Obama se inspirou em Alinsky quando se tornou um organizador comunitário. Hillary Clinton escreveu uma tese acadêmica intitulada“There Is Only the Fight . . . ”: An Analysis of the Alinsky Model.
Se Maquiavel é chamado de realista pela sua descrição avalorativa de como funciona o poder, Alisnky teria que ser chamado de surrealista político. O famoso slogan “os fins justificam os meios” atribuído a Maquiavel perde o significado na obra de Alinsky. Para ele, não há sequer “fins” objetivos que sirvam de critério legitimador dos instrumentos à disposição do agente. Fins podem justificar meios tanto quanto meios podem justificar fins, afinal o próprio conceito de justificativa já é instrumental para Alinsky. O militante deve compreender a moralidade como uma “racionalização retórica”, um “passaporte” para a ação: “faça o que puder com o que você tem e depois vista sua ação com roupas morais”.
“Dizer que meios corruptos corrompem os fins”, de acordo com Alinsky, “é acreditar na imaculada concepção de fins e princípios.” “Aquele que teme a corrupção teme a vida”, dizia. Fins e meios devem ser escolhidos e julgados e acordo com a atualidade da ação.
Pense na questão do vandalismo. Será que violência e depredação seriam meios legítimos para a ação política? Esse é o tipo de problema moral que perturba o observador, mas que se derrete no toque da militância. O discurso do militante se modela de acordo com a contribuição que um ato de vandalismo específico oferece para a realização de uma ação específica. Quando o vandalismo constitui a ação pretendida, a militância legitima a violência como uma resposta ao verdadeiro vandalismo dos hospitais sem remédios e das escolas sem professores. Quando o vandalismo prejudica a ação, ele passa a ser denunciado como uma óbvia demonstração de fascismo, mesmo que o militante do discurso presente e o vândalo da depredação passada sejam a mesma pessoa.
Por isso o discurso “sempre que houve uma revolução, foi com vandalismo”  virou o discurso que atribuía violência a grupos de extrema-direita. Por isso o movimento que se define em seu logotipo por um ato de vandalismo passa a assumir um discurso pacifista.
Se o militante vai ser pacifista como Gandhi ou violento como Che Guevara depende apenas das circunstâncias presentes, principalmente dos meios que ele tem a sua disposição. Alinsky aprovava a maleabilidade moral de Lenin quando dizia aos revolucionários bolcheviques: “eles têm as armas e portanto nós somos a favor da paz e da reforma através da urna. Quando nós tivermos as armas, vai ser através da bala.”
Não se pinta uma revolução molhando o pincel numa consciência limpa. O seguidor de Alinsky se entende como “um relativista político”, um estrategista sem “uma verdade fixa - a verdade para ele é relativa e mutável; tudo para ele é relativo e mutável.”
“Fascismo” e “nazismo” são termos relativos e mutáveis. Quando o militante partidário atribui uma ideologia de extrema direita a seu oponente, ele não está descrevendo as raízes históricas que, por inspiração ou por analogia, explicam determinado comportamento. O xingamento apenas emprega a simbologia necessária para neutralizar um oponente político.
Em seus momentos mais ousados, a militância usa uma terminologia para significar seu exato inverso. É o que acontece quando manifestantes independentes e apartidários passaram ser tratados como discípulos do totalitarismo. Se o apartidarismo neutralizasse o PSDB ou o PT, eles seriam a favor. Como neutralizam o PSTU e o PSOL, são contra.
Há um ano e meio atrás, os mesmos militantes que denunciam o apartidarismo das manifestações brasileiras estavam acampando em praças públicas inspirados pelo apartidarismo do Occupy Wall Street. Como lembra essa matéria:
O protesto do Occupy Wall Street pode ser um movimento, um fenômeno momentâneo ou algo no meio termo, mas uma coisa que seus ativistas mais ferventes insistem é que ele não é uma tropa de choque para nenhuma campanha política partidária.
Um porta-voz do Occupy Wall Street chegou a dizer que se alguém tentasse dar uma direção partidária ao movimento, “haveria tantas pessoas que se recusam a aprovação de qualquer partido ou candidato que eu não acho que isso chegaria a acontecer”.
A rejeição do partidarismo que antes era fonte de inspiração agora é denunciada como autoritária, de direita, etc.  Parece contradição, mas é só militância. Alinsky explica citando o matemático Alfred North Whitehead: “na lógica formal, uma contradição é um sinal de derrota, mas na evolução do real conhecimento ela marca o primeiro passo do progresso em direção à vitória.”
Por isso militantes marxistas achavam lindo quando as pessoas se pintavam de verde e amarelo e saíam as ruas contra o Collor. Mas agora dizem que sair de verde e amarelo é coisa de fascista. Por isso diziam que eram pelo passe livre, mas quando as manifestações fugiram do seu controle, cancelaram as passeatas e disseram que 20 centavos estava de bom tamanho.
Não é que a militância se transforma. Ela própria é um órgão de transformação. A compreensão da dialética da política militante, dizia Alinsky, é vital:
Ela liberta-nos do mito de que uma abordagem é positiva e outra é negativa. Tal coisa não existe na vida. O que é positivo para um homem é negativo para outro. A descrição de qualquer procedimento como “positivo” ou “negativo” é a marca de um analfabeto político. Uma vez que a natureza da revolução é entendida a partir da perspectiva dualista, perdemos nossa mono-visão de uma revolução e passamos a enxergá-la juntamente com sua contra-revolução inevitável.
A militância é ao mesmo tempo reformista e contra-reformista. Assim como ela foi pró-manifestação e contra manifestação. Na verdade, ela se aquece do choque entre movimentos contrários. Alinsky dizia que a criança aprende a dualidade da política desce cedo, quando joga o pai contra a mãe para conseguir ficar acordada até mais tarde.
Não estou dizendo que os membros do Movimento Passe Livre, do PSTU e do PSOL leram Alinsky, ou estão conscientemente praticando seus ensinamentos. Da mesma forma que O Príncipe pode explicar a ação de um monarca que nunca leu Maquiavel, acredito que Alinsky oferece uma explicação para as atitudes dos militantes que desafiam observadores mais lógicos e racionais.
Também não tenho esperança de debater com militantes, apenas de esclarecer suas ações. Desde que descobri Rules for Radicals por acidente em 2002 (numa caixa de livros que não coube na mudança do meu cunhado), percebi que militantes não se abrem a discussões ponderadas. Na época, eu editava com meu amigo Gabriel Araújo o Nova Ordem Jovem(NOJO), um jornalzinho distribuído de graça na nossa universidade. Apesar de gratuito, o jornalzinho conseguiu comprar o ódio da União da Juventude Socialista, a tal UJS do PCdoB. Achei que, provocados, eles iriam partir para o debate. Em vez de argumentos, usaram sua influência para cancelar nossa participação no diretório estudantil e impedir que organizássemos debates que contariam com aliados da própria UJS.
Alinsky explica essa hostilidade. O militante não deve se “comunicar com ninguém puramente sobre a ética ou os fatos racionais de um assunto”. O debate constrói um chão comum de humanidade entre os debatedores. Sugere que a discordância entre o militante e seu oponente é factual ou lógica, que talvez alguém tenha cometido um lapso em seu raciocínio. A militância prefere projetar uma separação ontológica para com seus oponentes: “Os homens irão agir quando estiverem convencidos de que a causa deles está 100% do lado dos anjos e a oposição está 100% do lado do diabo”.
E o que isso tem a ver com pobreza?
Para o militante, o pobre só é um anjo enquanto permanece pobre. Se enriquece, vira um demônio. O sujeito que nasce pobre, mas que trabalha de noite para conseguir estudar no Senai de manhã com o sonho de um dia abrir o próprio negócio, estaria descendo a escada do inferno.
Quando os-que-não-têm atingem sucesso e se tornam os-que-têm, eles se colocam numa posição de tentar manter o que têm e sua moralidade muda com sua posição no padrão de poder.
Ao falar de Upton Sinclair’s Jungle, uma favela de Chicago que já foi considerada a pior de todos os Estados Unidos, Alinsky transforma o sucesso da comunidade em tragédia. “Com seu poder, eles lutaram e venceram”, diz Alinsky. Lamentável essa vitória, porque “como parte da classe média, eles também são parte da nossa cultura racista e discriminatória”.
Militantes falam em nome da pobreza enquanto abominam soluções que melhorem a qualidade de vida dos mais pobres. Querem o passe livre mesmo que isso implique que o pobre que só anda a pé pague pelo ônibus do adolescente de classe alta. Onde estava a comoção quando tiraram vans de circulação em várias cidades brasileiras? Onde estavam os cartazes contra o sistema de cartéis do transporte urbano?
Capitalismo para os Pobres combate a pobreza com as armas da riqueza. Quando capacitamos os pobres com produtividade, quando derrubamos barreiras institucionais e intelectuais ao empreendedorismo, quando fazemos do comércio um instrumento de inclusão econômica, as famílias brasileiras elevam seu padrão de consumo e passam a viver uma vida mais plena e autônoma. O vídeo do Pedro que, fabricando sabão, “de peão, hoje [virou] rei” é uma história de sucesso de capitalismo para os pobres. Os filhos do Pedro não precisarão depender de bolsas disso, vales daquilo, talvez sequer do Sebrae. Da perspectiva militante, histórias de prosperidade e independência anunciam uma tragédia. Pedro passou para o lado negro da força. Militantes revolucionários se fazem de amigos dos pobres, mas são apenas amigos da pobreza.
“Enquanto [os socialistas] têm um tipo de amor sentimental pela humanidade em seus corações, o ódio flui de seus lábios.” A frase é de Frédéric Bastiat, economista francês do século XIX. Bastiat entendia que as reformas sociais deveriam favorecer a “associação progressiva e voluntária” entre os membros de uma sociedade. Uma “associação mais próxima entre trabalho, capital e talento”, dizia, “deveria resultar em mais riqueza para a família humana e sua melhor distribuição”. O livro de Bastiat se chama Harmonias Econômicas.
Bastiat sentava-se à esquerda do parlamento francês, mas rejeitava a militância socialista que ele via nascer na Paris do século XIX. As campanhas pela cooperação entre indivíduos e povos que Bastiat e outros liberais radicais franceses avançavam desde o século XVIII passaram a enfrentar, além de conservadores saudosistas do Velho Regime, um novo movimento autoritário que desencadeava “antagonismos fundamentais em todos os lugares”. Antagonismos, por exemplo, “entre capital e trabalho”, “entre agricultura e indústria”, “entre o produtor e o consumidor”, “entre o nativo e o estrangeiro”, “entre o trabalhador do campo e o morador da cidade”. Bastiat percebia que a natureza antagônica dos socialistas ia contra a ciência econômica, provocando crises contínuas na sociedade, e delas se alimentando. Era como se a oferta do socialismo criasse a sua própria demanda.
No alpinismo eterno do militante, o fim da pobreza seria um “blefe” e o “combate à pobreza” um fim em si mesmo. Existe apenas a luta… A perpetuação da pobreza não é um acidente da ação militante, mas sua práxis. “Nós vemos o topo da montanha ‘real’ na nossa frente, e lutamos por ele,” escreveu Alinsky, “apenas para descobrir que alcançamos mais um blefe, que o topo continua acima de nós. E assim se segue, interminavelmente”.
De certa maneira, Alinsky e Bastiat estão em precisa oposição. Bastiat queria a liberdade pela harmonia da ordem social. Alinsky encontra a liberdade nos conflitos da dialética revolucionária. O equilíbrio newtoniano contemplado por Bastiat é superado pelo darwinismo pragmático e inesgotável de Alinsky. A mudança pretendida pelo militante apenas ocorre quando há “aquela fricção abrasiva do conflito.”
É da fricção entre antagonismos que se acende a ação militante. Quando o fogo das manifestações saiu do controle da militância e começou a queimar as bandeiras dos próprios incendiários, restou aos militantes passar da reforma para a contra-reforma, como previa Alinsky. A luta sempre continua, só que agora contra o gigante-classe-média-fascista. A militância agora quer voltar a ter exclusividade nas ruas. Quer que o gigante volte a dormir. “A lei da mudança”, escreveu Alinsky, “deve preparar o anestesiamento da vítima antes de começar a cirurgia social”.
* Publicado originalmente no blog Capitalismo Para Os Pobres.

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