quinta-feira, 4 de julho de 2013

Desacato























Por Contardo Calligaris para a Folha de São Paulo

Em 2010, quando quis marcar o dia da inspeção veicular do meu carro, já não havia mais horários. A primeira data disponível era depois do fim do prazo de minha placa.
A inspeção descobriu que meu escape estava furado. Naquele dia, a caminho do mecânico que trocaria o tubo, meu carro passou por um radar e foi multado por circular sem certificação ambiental. Isso, eu descobri quando a multa chegou.

Tudo bem, não riam de mim, é que morei muito tempo na Europa e nos EUA, mas eis o que eu fiz: escrevi uma bonita carta ao DSV, Departamento de Operação do Sistema Viário, incluindo cópia dos documentos que atestavam 1) minha passagem pela inspeção na manhã do dia da multa, 2) o resultado da inspeção, 3) minha passagem pelo mecânico no mesmo dia, 4) a inspeção final.

Expliquei que eu tinha sido multado no trajeto entre a inspeção e o mecânico que consertaria o defeito encontrado e pedi que o departamento reconsiderasse a multa.
Talvez eu merecesse a multa de qualquer forma (pelo atraso inicial), mas a questão é: você recebeu resposta? Eu, nem sequer um sinal de que alguém tinha recebido minha correspondência.

O tempo passou. Neste ano, 2013, uma vez o IPVA pago, o licenciamento demorava a chegar. Um despachante descobriu que a multa de 2010, com juros e correção monetária, tinha reaparecido e impedia que meu carro fosse licenciado.

O despachante "nunca riu tanto" quanto ao escutar a história de minha carta etc. --coisa de gringo mesmo, essa de acreditar que, naquele endereço indicado nas notificações, alguém se daria à pena de ler e responder a um cidadão.

Essa história me custou algum dinheiro, mas não fui pessoalmente nem à inspeção nem ao Detran. É minha desobediência civil de privilegiado: pago, mas não deixo o Estado abusar do que tenho de mais precioso, meu tempo.

Para o Estado, em geral, o tempo do brasileiro não vale nada, e essa desvalorização do tempo do cidadão talvez seja mais injuriosa do que as eventuais falhas nos serviços. Nos serviços, podem faltar recursos (somos pobres), mas o descaso com o tempo do cidadão é só desprezo.

O mesmo desprezo aparece no fato de que a administração brasileira carece de mecanismos para proteger o cidadão contra os abusos do poder. Nos Estados democráticos, proteger o indivíduo é uma das grandes preocupações dos legisladores.
Nos Estados totalitários (modernos e antigos) ou nos Estados de origem colonial acontece o contrário: o legislador protege a administração (o partido único, a "coletividade", o império, a corte de Lisboa, tanto faz) contra o reles súdito.

Um leitor, Bárbaro, comentando a coluna da semana passada, assinala que os brasileiros não são vítimas só de descaso, "mas de intimidação mesmo, como atestam aqueles famigerados cartazes em qualquer repartição pública alertando o pobre cidadão que o desacato a funcionário público no exercício de seu trabalho é crime" (pena de seis meses a dois anos de detenção ou multa).

Talvez a reforma em curso do Código Penal acabe com o crime de desacato, que é uma pura coação do Estado contra o cidadão. Enquanto isso não acontece, proponho que, nas repartições públicas, ao lado do cartaz do desacato, seja pendurado outro, que lembre as punições para o funcionário e para o próprio Estado quando eles desacatam o cidadão que eles deveriam servir.

É uma boa ocasião, aliás, para sugerir que o termo "funcionário público" seja substituído por "servidor público". O que importa não é preencher bem uma função num governo ou numa administração: os torturadores eram ótimos funcionários da ditadura; o que importa é cumprir honradamente a tarefa de servir os cidadãos.

A ausência de canais pelos quais seja realmente possível se queixar (junto com a ideia intimidante de que a queixa pode ser entendida como desacato) são provas da necessidade de uma reforma política profunda, que mude a relação do Estado com o cidadão.

Esta é uma coisa que qualquer psicanalista e psicoterapeuta constatam e que vale no consultório e fora dele: escutar não é apenas uma condição para saber o que curar e como, escutar é tão importante quanto curar. Um governo que não escuta não terá legitimidade, mesmo que consiga curar alguns ou todos os males.

Justamente, o silêncio do DSV fez com que eu gostasse de ver, alguns dias atrás, as vidraças do Detran quebradas pelas pedras dos manifestantes.

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