quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Política em tempos liberais


Roberto DaMatta para O Estado de S. Paulo
Escrevo invocando a figura de Amaury de Souza, morto por um câncer no pâncreas aos 69 anos na semana que passou. Foi um dos melhores cientistas políticos de sua geração. Encarou como poucos a tarefa de passar do criticar ao construir, essa travessia fundamental que a finitude e o afeto demandam.
Conheci Amaury nos Estados Unidos, em 1969, onde ele fazia doutorado em Ciência Política no MIT e eu em Antropologia Social em Harvard. Como estrangeiros e um tanto desbravadores, estabeleceu-se entre nós uma simpatia e solidariedade imediatas. Era um momento de grandes esperanças, intensas ansiedades e paradoxais expectativas. A ditadura militar enrijecia no Brasil e nós todos – uma primeira leva de estudantes de Ciências Sociais – aguardávamos com ansiedade o retorno para compartilhar as nossas descobertas pessoais e profissionais. Um dia, em Harvard, ouvi do Amaury a seguinte frase a proposito de um ensaio que escrevi sobre a noção de má sorte – a panema – na Amazônia: “O que importa é demonstrar os argumentos. Tens argumentos?” Jamais me esqueci da majestade da observação. Amaury dizia coisas grandes – toda a história da humanidade é uma tentativa de demonstrar argumentos – de modo direto. A última vez que com ele falei foi num seminário sobre liberalismo no qual, a caminho do palco, ele me confessou sem rodeios: “O que você fez para escrever tão bem?” Passou-me pela cabeça duvidosa do elogio generoso responder de pronto – o sofrimento; mas, logo vi, que essa derradeira pergunta era tão difícil de enfrentar quanto a primeira.
Usando uma palavra em moda, peço vênia ao leitor para louvar a sua coragem de ser um liberal num país que jamais entendeu o que é liberalismo e, graças ao prestígio imenso de sua “esquerda” e ao peso maior ainda de sua ignorância, se dá o luxo de ignorar o pensamento de gente como Alexis de Tocqueville. No Brasil, liberalismo virou nome feio e ser liberal, uma categoria acusatória. Deixo o meu pesar pela travessia do Amaury de Souza e louvo o seu exemplo de vida.
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E por falar em liberalismo, impossível não crer que Lula e toda a cúpula do PT soubessem dos meandros do mensalão. Neste Brasil onde as relações pessoais são mais importantes do que as persuasões individuais e ideológicas – aos amigos tudo, aos inimigos a lei! E, com o PT, aos companheiros, tudo isso e o céu também… Numa sociedade marcada por múltiplas éticas, todas a serem respeitadas ou jamais discutidas, porque conhecemos seus praticantes, e dentro de um partido em que o projeto de poder sempre se confundiu com o futuro e o bem-estar da coletividade no qual ele existe, me parece impossível que Lula, José Dirceu, o famoso capitão do time, e outros próceres não tivessem articulado o plano de chegar ao socialismo compadresco petista pelo capitalismo selvagem nacional – o infame mensalão.
Não posso, por tudo o que sei sobre o Brasil, aceitar – data vênia – a tese das defesas segundo a qual a república lulista agia à americana, individualisticamente, com cada qual cumprindo religiosa e burocraticamente o seu papel oficial, num país no qual as obrigações para com os amigos abrangem aceitá-lo até mesmo na sua mais profunda ingratidão, inveja e ressentimento. No Brasil, a amizade não se individualiza e, sendo relacional, engloba os amigos que são aturados ou suportados, por mais loucos que possam ser. Amigo de amigo é amigo; inimigo de amigo é inimigo; mulher de amigo é homem… Conforme dizia um rebelde pernambucano que confundia liberalismo com golpe: eu resisto a tudo, menos ao pedido de um amigo! Até no outro mundo, os pistolões e as rezas nos aliviam. E como ter uma cultura escravocrata se não culpamos e individualizamos o inferior e absolvemos os superiores, com os quais nos apadrinhamos compulsivamente?
Lula foi salvo pelo papel de presidente e lembra o caso Nixon, e, mais adiante, Clinton. Em Watergate, alguns pegaram prisão. Nixon, porém, livrou-se das grades, mas foi destituído do cargo. O tratamento privilegiado concedido aos presidentes (representados como mártires, como Lincoln e Vargas; ou como malandros que passaram raspando pelo fundo da agulha, como Clinton ou JK; ou dissolutos, como Nixon e Collor) mostra como mesmo em tempos pós-modernos a velha identificação entre Deus e rei continua atuando implicitamente junto a certos cargos públicos. Não é, obviamente, um elo axiomático como foi no Egito e no Oriente Médio, mas o papel exclusivo abarcado pela Presidência de um país ultrapassa facilmente os limites do partido e do governo, abarcando a sociedade e seus valores.
No caso do Brasil, há um claro messianismo que todos os populistas exploram sem cessar e que é a marca do lulismo. O Brasil sou eu, diz o nosso populismo real e divino. Um milenarismo tingindo ideologicamente que não é fácil de confrontar porque ele fala a linguagem arcaica da realeza divina e, no caso da nossa presidência divina, que isenta o presidente de atos impuros ou profanos, mesmo quando eles são inescapáveis, ele também discursa usando o mais moderno jargão desta nova língua nacional que se chama economês. Esse idioma de um demonizado neoliberalismo que fala em mercado, competição, igualdade perante a lei, moeda forte, responsabilidade pública, fiscal e pessoal, e meritocracia. Ou seja, tudo isso que o grosso das elites brasileiras odeiam de todo o coração. E que – não tenhamos dúvidas – é o que está em jogo no julgamento desse desprezível mensalão.

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