quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Como a venda de estatais salvou o Brasil





Economista traça um panorama da privatização no mundo e mostra que a ineficiência e a corrupção fazem parte da natureza dos Estados gigantes

por José Maria e Silva para o Jornal Opção


Ao contrário do Rai­mundo do poema de Carlos Drummond de Andrade, a palavra “privatização” até pode ser uma solução, mas no Brasil ela é mais do que uma rima para “palavrão” — é, em si mesma, uma palavra amaldiçoada. À sua simples menção, os políticos fazem o sinal da cruz, como se tivessem visto o Diabo. Tanto que, nas duas vezes em que foi candidato a presidente da Re­pública, em 2002 e 2010, José Serra jurava, nas entrevistas e discursos, que não iria privatizar empresas. E seu colega de tucanato, Geraldo Alckmin, quando enfrentou Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, transformou-se num outdoor ambulante das empresas estatais. Quem se lembra desses episódios é o economista Rodrigo Constantino em seu livro “Privatize Já” (Editora Leya, 2012, R$ 39,90), lançado no final do ano passado, inclusive em formato digital (Edição Kindle, R$ 25,82). O livro é um libelo abalizado e bem humorado em favor da redução do tamanho do Estado e, a exemplo do histórico movimento pelas Diretas Já, também se propõe a ser um grito de guerra —não pela redemocratização do País, mas pela democratização da economia.
Sim, quando se lê com atenção e sem preconceitos o livro “Privatize Já”, fica muito claro que a ostensiva presença do Estado na sociedade (não só na economia) é profundamente antidemocrática. Se o movimento pelas Diretas Já devolveu ao cidadão seus direitos políticos, ainda falta ao Brasil devolver às pessoas seus direitos econômicos — começando pelo direito de não ser escravizado por impostos, que roubam o salário do trabalhador e o lucro das empresas, sem devolver praticamente nada em troca, pois os serviços públicos são muito ruins. Rodrigo Constantino, o autor de “Privatize Já”, é um jovem economista de 36 anos que defende, com verve, o liberalismo em artigos no jornal “O Globo”, na revista “Voto” e no sítio “Ordem Livre”. Autor prolífico, já publicou obras sobre a Escola Austríaca de economia, a romancista e filósofa Ayn Rand e até sobre o PT, com o sintomático título “Estrela Cadente”. Também publicou, em 2011, o livro “Liberal com Orgulho”, que, como indica o título, faz uma defesa sem vergonha (no bom sentido) do liberalismo, num País em que dizer que alguém é “neoliberal” é como xingar a mãe.

“Privatize Já” divide-se em 30 capítulos, que se agrupam em cinco partes. Na primeira (“Por que privatizar é melhor?”), o autor tece considerações gerais sobre os fundamentos da iniciativa privada e apresenta exemplos de privatizações em todo o mundo, com destaque para o modelo inglês de Margaret Thatcher. Na segunda parte (“Co­mo a privatização melhorou o Brasil”), traça comparativos entre diversos setores antes e depois do processo de privatização das estatais, comandado por Fernando Henrique Cardoso. Na terceira parte (“Como a privatização pode melhorar o Brasil”), enfrenta as vacas sagradas do estatismo: Petrobrás, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Na quarta parte (“Privatizem o mar”), dedica-se a nem sempre felizes exercícios de imaginação, buscando sacudir os sólidos alicerces da mentalidade estatizante do brasileiro. Por fim, reserva a última parte ao que chama de “privataria petista”, num contraponto ao livro “A Privataria Tucana” (Geração Editorial, 2011), do jornalista Amaury Ribeiro Jr.
Obra descontraída

Uma frase do economista Milton Friedman, gigante do liberalismo contemporâneo, inspira não só o conteúdo do livro, a que serve de epígrafe, mas também o estilo de Rodrigo Constantino. “Se colocarem o governo federal para administrar o deserto do Saara, em cinco anos faltará areia”, ironizava Friedman. Com a mesma desenvoltura do guru liberal norte-americano, Constantino salta da planilha de dados para os fatos do cotidiano e, com a verve de um cronista, recorre até a casos pitorescos para defender as privatizações. O projeto gráfico de “Privatize Já” ajuda a fazer do livro uma obra descontraída, em que, ao final de cada capítulo, o leitor se depara com textos curtos, em letras brancas sobre um fundo negro, trazendo, de forma sintética, exemplos concretos do que foi discutido no capítulo. O primeiro desses textos discorre brevemente sobre Rousseau, o inimigo número um da propriedade privada, um homem que amava a humanidade com o mesmo fervor com que desprezava o próximo, inclusive seus próprios filhos.

Já na introdução, o autor deixa claro que “privatizar não é uma panaceia, uma medida mágica que soluciona todos os problemas”, mas sustenta que “é, sim, um passo extremamente importante na direção de mais progresso, mais prosperidade e também mais liberdade”. Ao lado da epígrafe de Friedman, Constantino poderia ter posto o provérbio: “o olho do dono é que engorda o gado”. Pois “Privatize Já” sustenta a tese de que o sentimento de posse se alicerça na natureza humana, começando pelo próprio corpo e pelas pessoas e objetos que o “eu” conjuga na primeira pessoa: minha mãe, meu pai, meu brinquedo, quando criança, e meu filho, minha casa, meu carro, depois de adulto. “O fato de cuidarmos melhor do que é nosso não deveria ser motivo de muita discussão”, escreve Constantino. “Os donos de uma empresa cuidam bem dela, preocupam-se com seu destino no longo prazo, pois a empresa é deles, pertence eles. Já quando lidamos com a propriedade de terceiros, quando o bem não é nosso e estamos apenas temporariamente usufruindo dele, parece natural que o grau de dedicação seja menor”, acrescenta.
Prostituindo as estatais

O escritor e pregador norte-americano James Freeman Clar­ke, talvez inspirando-se em Thomas Jefferson, disse que “o político pensa na próxima eleição, enquanto o estadista pensa na próxima geração”. Essa frase virou praticamente um provérbio, de tão repetida, e só perde em popularidade no Brasil para um ditado que sintetiza a desconfiança do brasileiro em relação ao capitalismo: “Empresário só pensa no lucro”. Rodrigo Constantino vai radicalmente de encontro ao senso comum e sustenta que é o homem público e não o empresário quem se vê condicionado a pensar sempre no curto prazo: “Mesmo um grande político precisa ser reeleito para continuar na política. Isso coloca enorme pressão populista em sua gestão”. A tendência, segundo ele, é o político transformar a empresa estatal num cabide de emprego, sem se preocupar com a eficiência que o empreendimento privado exige de seu dono, sob pena de falência. O que leva o autor de “Privatize Já” a concluir: “O político tende a usar a estatal como uma prostituta, enquanto o empresário encara sua empresa como uma esposa, mãe de seus filhos, com quem pretende permanecer casado por toda a vida”.

Foi essa convicção de que o Estado não tem vocação para ser empresário que levou Mar­garet Thatcher a empreender um ousado programa de privatização na Inglaterra a partir de 1979 quando se tornou primeira-ministra. Na época, as ideias do economista britânico John Maynard Keynes imperavam na Europa e no mundo, desde o pós-guerra, inclusive no Reino Unido. “Uma das principais recomendações de Keynes era para o governo agir de forma contrária ao ciclo, ou seja, expandir os gastos no momento de recessão econômica e cortá-los na fase de crescimento acelerado, para suavizar as tendências da economia”, explica Rodrigo Constantino. Mas os discípulos de Keynes não seguiam o mestre à risca, eram “keynesianos manetas”, no dizer de Cons­tantino, que só se lembravam da recomendação de que o governo deve agir de forma contrária ao ciclo econômico nas fases de arrefecimento, quando aproveitavam para aumentar os gastos públicos através da emissão de moeda. Nos períodos de crescimento da economia, quando deveriam aproveitar para cortar os gastos públicos sem grandes impactos sociais, os “keynesianos manetas” continuavam cevando o Estado obeso.

Na Inglaterra, Margaret That­cher apostou na redução do Estado, dando mais liberdade ao mercado, com a privatização das empresas estatais. “Quando Thatcher deixou o poder, a presença de empresas estatais na indústria britânica tinha sido reduzida em cerca de 60%, segundo suas próprias estimativas. Algo como um quarto da população detinha ações em empresas privadas, massificando o capital. Quase 600 mil empregos foram transferidos do setor público para o setor privado”, conta o autor de “Pri­vatize Já”, lembrando que, no final dos anos 90, o desemprego na Inglaterra já era o menor da região.

Um sucesso que não serviu de alerta para a França do socialista François Mitterrand, que chegou ao poder em 1981 e tratou de intensificar a “mentalidade estatólatra” que sempre caracterizou o povo francês. “Os dois primeiros anos do governo de Mitterrand foram marcados por um grau estatizante quase sem precedentes”, afirma Rodrigo Constantino. Com isso, a inflação chegou a 14% ao ano e o número de desempregados ultrapassou a casa de 2 milhões de pessoas. Resultado: já em 1983, a França socialista de Mitterrand teve de acompanhar a Inglaterra liberal de Thatcher, iniciando, ainda que com mais timidez, o seu processo de privatização.



Máfias no comando
Mesmo não sendo tão radical quanto a privatização de Thatcher, a privatização de Mitterrand – que possibilitou a venda de 65 estatais, entre elas o canal de televisão TF1 – levantou 50 bilhões de francos para os cofres públicos e foi finalizado em apenas seis meses, merecendo a aprovação de 41% dos franceses, enquanto 27% eram contrários. “Por quase todos os pontos de vista, a privatização francesa foi um sucesso. O número de acionistas saltou de 1,5 milhão para 8 milhões, e a popularidade era enorme. O governo separou 10% das ações para os empregados, que teriam direito a grandes descontos. Era a versão francesa do ‘capitalismo do povo’, só que mais tímido que o inglês”, escreve Constantino, que apresenta uma série de indicadores comparando o desempenho da França com outros países europeus. Mesmo ficando aquém da Alema­nha e da Inglaterra, sempre mais arrojadas na direção do livre mercado, a economia francesa melhorou substancialmente com as privatizações e, no entender do autor, a França poderia estar em maus lençóis, se a desestatização do socialista Mitterrand não tivesse sido aprofundada por Jacques Chirac.

Mas se “privatizar” não é o palavrão que se tornou no Brasil também não chega a ser um abracadabra. E um exemplo de que a privatização pode não funcionar a contento vem da Rússia. Com o fim do império comunista em 1991, as antigas repúblicas que se abrigavam sob a foice e o martelo estiveram perto da anomia. Máquinas, armas e outros bens do Estado eram roubados pelos membros do Partido Comunista, o que Anatoly Chubais – um dos artífices das reformas de Boris Yelstin na Rússia juntamente com Yegor Gaidar — chamava de “privatização espontânea”. Para reverter esse quadro e conquistar apoio popular para as reformas, os gestores da privatização russa decidiram distribuir as propriedades estatais entre a população por meio da distribuições de vouchers para 148 milhões de russos. “O problema é que, em um país recém-saído do socialismo, a demanda reprimida era gigantesca diante da miséria. Com um presente caído dos céus, os russos partiram em busca de bens básicos, trocando os vouchers por qualquer quantia possível, incluindo garrafas de vodka”, relata Constantino.

“Em 20 meses, algo como 14 mil empresas seriam leiloadas pelo mecanismo de vouchers, sendo que muitas delas sequer tinham balanços contábeis para avaliação dos potenciais compradores. No total, quase 70% da economia foi colocada em mãos privadas. O problema é que boa parte dessas mãos pertencia a figuras obscuras, gente com informação privilegiada por ter ligação com a antiga elite política”, afirma Constantino. Depois de mais de 70 anos sob o jugo do comunismo, a Rússia estava aprendendo o que era propriedade privada, uma vez que a maioria dos russos já nascera num mundo coletivista, em que o Estado era a encarnação de Deus. “O capitalismo russo nascia torto e em 1998 já entraria em colapso. Os oligarcas escolheriam então um tenebroso ex-agente da KGB, Vladimir Putin, para substituir Yeltsin no poder. Eles pensavam que seria fácil usar esse jovem de confiança como marionete de seus interesses. Não contaram com o risco de a criatura se voltar contra seus criadores e tentar absorver todo o poder para si”, sustenta Constantino, acrescentando que, “após a rápida fase capitalista, a Rússia iria mergulhar uma vez mais na autocracia, com Putin reassumindo o papel de czar da ‘modernidade’”.
Capitalismo de Estado

Mesmo gerando um monstruoso capitalismo de Estado, controlado por máfias gestadas nos porões do antigo regime comunista, a privatização russa aumentou a renda da classe média e, por mais que tenha defeitos, não pode ser comparada à fome que grassava nos piores momentos do regime comunista, como a fome ucraniana entre 1932 e 1933, que provocou a morte de cerca de 6 milhões de pessoas. O mesmo se pode dizer das privatizações na China, um avanço em relação ao primitivismo econômico da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, que se arvorava a proibir até as flores de nascer, por julgá-las inúteis. Ao contrário de muitos políticos brasileiros, nem sempre de esquerda, que enaltecem sem ressalvas a economia chinesa, Rodrigo Constantino reconhece que a China padece de muitos problemas, começando pela completa falta de liberdade política. Evidentemente isso se reflete na economia: “O setor financeiro ainda é dependente dos interesses estatais, levando ao problema da má alocação e recursos em muitos casos”.

“Privatize Já” também aborda as privatizações latino-americanas. No Chile, a privatização foi efetivada por uma espécie de parceria entre os economistas da Universidade de Chicago e a ditadura do general Augusto Pinochet, que, ao menos em termos econômicos, comportou-se como um déspota esclarecido. Infelizmente, o ideário liberal não vicejou de baixo para cima entre os chilenos — teve de ser imposto por canhões e coturnos. O Chile de Pinochet e a Inglaterra de Thatcher, ainda que por caminhos políticos radicalmente opostos, são considerados modelos de privatização bem-sucedida. Basta comparar o Chile à Argentina, hoje, para se perceber o abismo social e econômico em que um Estado ditador e metido a empresário pode enfiar um país.

Como observa Cons­tan­tino, o Chile possui a maior renda per capita e o maior Índice de De­senvolvimento Humano da vizinhança. Enquanto isso, a Argentina, castigada pelo populismo, sai de uma crise para cair noutra, enrascada em que o Brasil estaria metido se Fernando Henrique não tivesse dado um basta nos planos mirabolantes dos desenvolvimentistas que pariram o Plano Cruzado.
A “Boibrás” do BNDES

Rodrigo Constantino avalia como positiva as privatizações brasileiras. E vale a pena se debruçar atentamente sobre os dois capítulos do livro que tratam da experiência no Brasil. O autor compara várias empresas antes e depois das privatizações, como a Embraer, a Vale do Rio Doce e o setor de telefonia, não havendo como negar que a venda das estatais foi boa para o país — a não ser que o leitor queira tapar o sol dos fatos com a peneira furada da ideologia socialista. Mesmo o processo de privatização tendo beneficiado grandes empresários (que, como o próprio Constantino reconhece, “não costumam gostar do livre mercado”) ele ainda foi positivo para o País, pois tirou das costas do erário estatais que só davam prejuízo. Sem contar que o próprio Plano Real, sem o programa de privatização, teria fracassado, a exemplo de seus antecessores, que tentaram vencer a inflação sem abrir a economia e estimular a concorrência. Até porque ineficiência e corrupção, como mostra Cons­tantino, fazem parte da natureza das estatais.

Infelizmente, esse Brasil tucano um pouco menos estatizante (no campo econômico apenas, pois FHC foi quem começou a estatizar o social) está sendo desmontado na Era Lula, continuada pela presidente Dilma Rousseff. O governo petistas decidiu privatizar estradas e aeroportos, mas sua ação direta no meio empresarial cresce a olhos vistos. Citando reportagem da revista “Época”, Constantino observa que o governo tem influência em cerca de 700 empresas, começando pelo fato de que é o Estado é maior banqueiro do país, representando quase 50% do setor via bancos públicos. Para Rodrigo Constantino, o BNDES “se tornou uma verdadeira ‘Bolsa-Empresário’ durante o governo petista”, comandando um orçamento paralelo que transfere bilhões para grupos poderosos. Um deles é a JBS, que Constantino chama de “Boibrás”: “A JBS, por exemplo, recebeu tantos recursos do banco (mais de 10 bilhões de reais), que este acabou virando sócio com um terço do negócio, pois ficou inviável a empresa honrar todos os seus compromissos financeiros”. Neste cenário em que o governo petista estatiza o capitalismo, transformando empresários em sócios do Estado, “Privatize Já”, de Rodrigo Constantino, é um livro oportuno. Ela tenta mostrar a nós, brasileiros, que existe vida fora do Estado.  

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