quarta-feira, 20 de junho de 2012

Prescrição por lentidão do judiciário garante impunidade a francês

Estrangeiro dirigia alcoolizado quando bateu em carro com cinco amigos na Savassi (Belo Horizonte). Uma das vítimas continua (por três anos) em estado vegetativo 


Por Mateus Parreiras e Tiago de Holanda para O Estado de Minas



Teste do bafômetro constatou que Olivier Rabello dirigia sob efeito de álcool


"Estou no Brasil. Aqui nada acontece", Olivier Rebellato, francês que causou acidente em Belo Horizonte, na época, ao duvidar que seria punido

Carro em que estavam as vítimas ficou destruído com a colisão.


Madrugada de sexta-feira. Em clima de festa, cinco amigos voltam de uma boate pela Rua Alagoas, na Savassi, Zona Sul de Belo Horizonte, em um Mercedes Classe A, sem saber que seus destinos mudarão em fração de segundos. Ao passar pelo cruzamento com a Avenida Cristóvão Colombo, por volta das 3h50, o carro em que estão é destruído por um Chevrolet Captiva, dirigido pelo francês Olivier Rebellato. Quem vê o acidente conta que o estrangeiro, sem habilitação regular no Brasil, passou direto pelo sinal vermelho, em alta velocidade. Todos os ocupantes do Classe A se feriram e, desde então, uma jovem, hoje com 29 anos, está presa à cama, em estado vegetativo. Naquele 17 de abril de 2009 começava um enredo de irresponsabilidade, impunidade, injustiça, dor e revolta que teve um dos principais capítulos encerrado ontem. Beneficiado pela mesma Justiça da qual zombou, o francês, que dirigia alcoolizado, não pode mais ser responsabilizado criminalmente. Mais de três anos após o acidente, as vítimas foram ontem notificadas de que a demora em julgar o caso fez com que o processo prescrevesse. “É um absurdo, dá raiva, mas eu já esperava. A gente sabe que a impunidade é regra no Brasil”, revolta-se André Eduardo Magalhães, de 29 anos, que ficou em coma por 30 dias após o desastre.
O francês também sabia da regra. Tanto que, mesmo sabendo da gravidade do acidente que provocou, debochou da situação, dizendo que, por estar no Brasil, nada aconteceria. E foi além: acrescentou que o caso só teve repercussão por que ele dirigia “um carro caro”, e não “um Fusca”. A situação de desamparo das vítimas – que assistiram impotentes ao causador do sofrimento ser solto, ter o passaporte devolvido por decisão judicial, fugir e agora ser livrado devido à demora da Justiça – não é um caso isolado. Só neste ano prescreveram 11 processos relativos a crimes de trânsito em Minas Gerais. Acidentes em que condutores alcoolizados mataram, feriram ou conduziram seus veículos de forma irresponsável. Em todos os autos os magistrados deixam claro sua insatisfação com a lentidão do Judiciário, que culminou na extinção da punição. No ano passado foram 30 processos de trânsito nessa situação, 33 em 2010 e 16 em 2009.

O francês Olivier Rebellato, então com 20 anos, foi preso em flagrante no dia do acidente e denunciado pelo Ministério Público por três crimes de trânsito: conduzir veículo sob efeito de álcool, dirigir sem habilitação e por causar lesão corporal culposa nas vítimas do acidente. Seis meses depois, a Justiça concedeu a ele liberdade provisória, condicionada ao pagamento de R$ 5.935,57 de fiança. Também devolveu-lhe o passaporte. Assim que recebeu o documento, o estrangeiro deixou o Brasil e se refugiou na França, onde está “a salvo”, já que o país não extradita seus cidadãos. Como o acusado desapareceu, a Justiça ordenou sua prisão preventiva, medida que acabou cassada com a prescrição do crime.

As falhas que garantiram a impunidade ao francês indignaram o próprio desembargador que constatou a prescrição, Renato Martins Jacob. Ele não quis comentar o processo, mas suas palavras no texto jurídico soam como um desabafo envergonhado. Na decisão, o magistrado considera que Olivier “praticou gravíssimo delito de trânsito”. Ele vai além, admitindo não ter perspectivas de que a Justiça prevaleça sobre a impunidade nos crimes de trânsito: “O quadro é de impotência e de desalento. Triste país. Às vítimas – cujas sequelas psicológicas agora são agravadas pela impunidade – resta-me pedir perdão, porque sou peça de um Judiciário moroso e que não se sensibiliza com tragédias como a descrita nos presentes autos”, escreveu.

As linhas da decisão seguem tecendo críticas à legislação brasileira e à inépcia do sistema judiciário. “O paciente foi responsabilizado pelo cometimento de crime culposo, cuja pena, como todos sabem, não se mostra suficiente para cumprir a sua finalidade de prevenção e repressão do crime”, diz o texto da decisão. Jacob completa, destacando que o que já não era rigoroso, se torna ainda pior e incentiva os comportamentos criminosos. “A insuficiência da pena ainda produz efeito mais nefasto no seio da comunidade, na medida em que propicia a prescrição da pretensão punitiva do Estado, causa, essa, de mais descrença e certeza da impunidade.”

O advogado e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) Fábio Tofic considera a prescrição um importante instrumento para impedir que a ineficiência do Estado culmine em punição antes do julgamento. Contudo, essa mesma incompetência, na sua visão, traz impunidade. “O que era uma garantia para que o acusado não ficasse indefinidamente sujeito ao processo e um limite para que sua culpa fosse provada se tornou um alento para quem comete crimes”, disse. Para o especialista em direito criminal, as mesas abarrotadas de processos dos desembargadores é que emperram o sistema. “A segunda instância é onde a morosidade mais ocorre. Dessa forma, penas pequenas acabam em prescrição. Isso porque o tempo de extinção do processo depende do tempo máximo de pena”, afirma. O especialista argumenta ainda que os prazos da defesa e do Ministério Público são curtos demais para causar tantas prescrições. “Os juízes não têm prazos. Por isso levam meses para despachar decisões simples”, diz Tofic.

Advogado das vítimas, Marcos Egg, que assistiu a promotoria no processo criminal contra Olivier, garante ter cobrado diariamente para que a Justiça não perdesse o prazo de julgamento. “Fomos todos os dias ao fórum. Mas os juízes levavam três meses para liberar um despacho de uma página. A secretaria (do tribunal) precisou de um mês para juntar o processo. Agora, resta apenas o processo cível. Pedimos R$ 2 milhões para os feridos”, disse o advogado, que tentará executar os bens do francês. “Mesmo ele estando em seu país, podemos conseguir isso por meio de tratados internacionais”, espera.
O que diz a lei

O Código Penal brasileiro define dois tipos de prescrição para crimes: para condenados e não condenados. Em todos os casos, o prazo depende do tempo máximo de pena e da idade do autor, que quando é menor de 21 anos precisa esperar apenas metade do tempo. Se a pena é superior a 12 anos, o crime prescreve com 20 anos. Se o delito prevê pena maior de quatro anos e menor do que oito anos, a extinção se dá em 12 anos. Penas com menos de um ano prescrevem em dois anos. O acusado que não for denunciado pelo Ministério Público em menos de quatro anos também tem seu processo criminal extinto. Depois que a pessoa é julgada, passa a valer para a prescrição não mais o máximo da pena aplicável, mas o tempo determinado pelo juiz na condenação.

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