O germe do autoritarismo
Denis Lerrer Rosenfield - para O Estado de S.Paulo - Opinião - 04/07/2011
O país apresenta uma situação assaz curiosa. De um lado, observamos uma estranha complacência com os mais distintos descalabros em relação à coisa pública, tratada, na verdade, como coisa de alguns poucos. É como se a nação estivesse adormecida. De outro lado, notamos uma espécie de cruzada em relação a alguns comportamentos, tidos por nocivos à saúde e ao bem de cada um, como se coubesse ao Estado ingerir nas escolhas individuais.
É uma espécie de puritanismo de Estado. A nação está adormecida. Governantes e parlamentares estão dando uma amostra do que não deveria ser um comportamento exemplar de um representante do povo. O exemplo funciona ao contrário, como aquilo que não deveria ser feito. A mensagem que esses representantes estão passando aos cidadãos é a seguinte: locupletem- se com o dinheiro público, com os impostos de cada um de nós. A aprovação de leis na Câmara dos Deputados e no Senado torna-se objeto de uma barganha pública por cargos, emendas e benesses dos mais diferentes tipos, como se o mérito de cada uma das iniciativas não devesse ser considerado enquanto tal.
Estamos mesmo perdendo o sentido da hipocrisia. Nesta, um tributo é ainda pago à virtude, pois os que dela fazem uso procuram, pelo menos, encenar um outro comportamento, voltado para o “bem”. Na ausência da hipocrisia, até essa encenação desaparece. Palavras perdem o seu sentido ou passam a significar algo totalmente distinto, como se ilícitos ou crimes fossem brincadeiras de crianças, coisas de “aloprados”. O escândalo dos aloprados ganhou uma nova dimensão com a revelação, pela revista “Veja”, de um “desabafo” de um “qualificado” militante petista de que suas ações “inqualificáveis” tiveram um apoio partidário para desqualificar a candidatura de José Serra ao governo do estado de São Paulo, em 2006. Foi mais preciso ainda ao dizer que o mesmo instrumento já tinha sido utilizado com sucesso para desqualificar uma companheira do partido, Serys Slhessarenko, e o tucano Antero Paes de Barros, em Mato Grosso. Nem os companheiros são poupados.
Em um país “acordado”, essa nova revelação teria um efeito bombástico, sendo propriamente um fato novo que deveria ensejar novas investigações da Polícia Federal, do Ministério Público e uma atitude firme do Congresso. Até agora, nada aconteceu. O ministro Aloizio Mercadante, apontado pelo seu companheiro de partido como um dos mentores daquela ação criminosa, compareceu ao Senado e nada aconteceu. A própria oposição mostrou desinteressar- se do caso. O ministro chegou ao desplante de dizer que a militância envolvida no episódio achava que, assim, iria destruir a corrupção. “Eles entendiam que havia blindagem na imprensa em relação às ações do governo Lula. Então eles achavam que tinham essa missão heróica de combater isso.” A bandidagem mudou de nome. Ela se chama agora “missão heróica”. Está entendido. Os “aloprados” deveriam ser considerados “heróis”, embora possam ter se equivocado em sua ação.
Trata-se de uma enormidade. O problema, porém, reside em como podemos ter chegado lá, quando uma frase desse tipo possa ser dita no Senado, sem que produza uma comoção. Isto só se explica pela degradação moral do ambiente político. Por outro lado, o governo transmite uma outra mensagem, compartilhada, também, por governos de outras agremiações partidárias nos níveis estaduais e municipais. O Estado estaria se ocupando da saúde dos indivíduos, de seu bem. No país do carnaval e da cachaça, a mensagem é a de um puritanismo alicerçado no Estado. As medidas de cerceamento da liberdade de escolha, em diferentes níveis, só têm se acentuado. Elas começam insensivelmente, de modo a não produzir grandes reações. Funcionam como uma espécie de anestesia Progressiva, pois não se trata de uma anestesia comum, que deixa de produzir os seus efeitos após um breve período.
As coisas funcionam anodinamente. Numa espécie de longa história, elas começam com o cinto de segurança. Deveria ser função do Estado informar sobre os eventuais malefícios de dirigir sem o cinto de segurança, cabendo a cada um decidir se seguirá ou não essa orientação, assumindo evidentemente as suas consequências. A história prossegue com uma cruzada contra o fumo e as bebidas alcoólicas, como se as pessoas fossem incapazes de discriminar por si mesmas o que é melhor para elas. Para evitar qualquer tipo de mal entendido, não estou advogando que uma pessoa em ambiente fechado fume na cara de outra, o que seria um evidente desrespeito ao direito alheio, mas que cada um possa frequentar lugares exclusivos para uns e outros. Tampouco estou defendendo que bêbados dirijam pelas ruas. Se causarem um acidente por isto, devem evidentemente ser severamente punidos. Daí não se segue uma legislação puritana que só tem equivalente no mundo em países como a Arábia Saudita.
Uma legislação mais tolerante seria muito mais adequada, como acontece em vários países europeus. Um cálice ou dois de vinho não causam embriaguez!
A situação de restrição à escolha individual chega às raias da insensatez, obrigando as pessoas a usarem um padrão de tomada determinado, como se cada um não pudesse fazer a sua escolha. Parece não haver limites a essa intromissão do Estado, obrigando, mesmo, os médicos a não prescreverem determinados tipos de remédios para emagrecer, como se não fossem pessoas qualificadas para o exercício de sua profissão. A lista é longa e já se estende à compra de antibióticos nas farmácias sem receita especial, além de outras que já se anunciam em relação à publicidade de comidas gordurosas ou contendo alto teor de sódio. Telefones celulares estão igualmente na mira pelas ondas que utilizam. A situação não deixa de ser paradoxal. Complacência completa com a imoralidade pública e imposição de comportamentos puritanos na esfera privada. Quem ganha com esse estranho jogo? O do germe do autoritarismo?
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal Fluminense.
Fonte: O Estadão
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